Hamartía – O Exterminador do Futuro
Por Luciene Felix
A Sagrada Família – Murillo (Museo del Prado)
Recentemente, a mídia internacional trouxe à tona a notícia de duvidosos comportamentos de duas personalidades públicas: Dominique Strauss-Kahn, economista e agora ex-diretor do FMI e Arnold Schwarzenegger, ator e ex-governador da Califórnia, ambos casados e pais de quatro filhos.
Como vimos no artigo anterior (http://lucienefelix.blogspot.com/2011/05/kant-e-uma-filosofia-da-historia-para.html), tal qual a natureza, a razão também possui um télos (propósito, objetivo, finalidade) e este pode ser constatado através do crivo que ela mesma impõe às ações humanas: àquilo que fere a harmonia, o bom senso, à Justiça, como um corpo estranho ao juízo sensato, aos poucos (às vezes, milhares de anos) é excluído da norma.
O lógos marcha com vagar e, entre avanços e retrocessos, põe em relevo a correção moral, o decoro, a compostura, tributando valor à honradez e ao pudor.
No mundo globalizado, dispondo de nossas iluministas e humanistas atuais categorias mentais, não há como aceitar passivamente atitudes deploráveis e indignas, como se ainda fôssemos reféns de senhores feudais. A sociedade (opinião pública) aponta, denuncia, defende-se.
Até porque, indefensáveis, tanto na vida política quanto nas atividades corporativas, vilezas ético-morais têm sido punidas com renúncia (demissão voluntária ou sob coação), prisão, ostracismo, expulsão, banimento, desprezo.
Sucumbir às (ir) resistíveis paixões da carne em detrimento da ordem, invertendo valores tão caros à ratio, desde os tempos homéricos (Ilíada), ascende da mera insensatez à bestialidade. No âmbito político (público) e nos ambientes corporativos, por exemplo, a retaliação da sociedade é patente.
Arnold Schwarzenegger e Maria Shriver com seus filhos. Após 25 anos de união anunciam separação.
O ator e ex-governador confessou ter tido um filho com a empregada durante o casamento.
O ator e ex-governador confessou ter tido um filho com a empregada durante o casamento.
E quanto ao reparo à gravidade da vileza na esfera doméstica, privada?
Génos – além de raça, estirpe, família – é descendência, sendo também uma explicitação da natureza dos genitores. Comportamento desonroso no lar acarreta numa “hamartía”, palavra grega que designa a “marca” (falta) que um descendente traz de origem (http://lucienefelix.blogspot.com/2009/03/o-mito-de-tantalo.html).
Enquanto meras ‘marcas’, as hamartías constituem virtudes e vícios: dons culinários, aspirações intelectuais, espírito indômito, desbravador, inclinação aos vícios (do sexo, jogo ou drogas), ao otimismo, bom humor, às doenças físicas e psíquicas (como a depressão), tendência à procrastinação (preguiça), enfim, reconhecendo-os e cultivando-os ou repelindo-os, ora transmitimos talentos, ora suprimimos características constrangedoramente negativas.
Não há como prever o comportamento de um indivíduo (nem mesmo perscrutando a psyché ‘Alma’, como os psicanalistas: “me fale de seus pais”) ou mensurar a profundidade da desalentadora dor causada pelo ultraje que os familiares são obrigados a vivenciar. Há muito sabemos que origem não é, obrigatoriamente, destino e que cabe a cada um de nós a responsabilidade de interromper a transmissão hereditária de indisfarçáveis deficiências.
Desnorteadas, muitas “Marias” se vêem acometidas pela atér, cegueira que induz ao estado de desvario, depois à ação desvairada e por fim, à ruína.
Isso porque um lar não é um órgão como o FMI ou um país onde, tranquilamente, outro(a) economista ou candidato(a) substitui o execrável, com discurso persuasivo que induz a enxergarmos, no novo, talento e competência ainda maior.
Enquanto meras ‘marcas’, as hamartías constituem virtudes e vícios: dons culinários, aspirações intelectuais, espírito indômito, desbravador, inclinação aos vícios (do sexo, jogo ou drogas), ao otimismo, bom humor, às doenças físicas e psíquicas (como a depressão), tendência à procrastinação (preguiça), enfim, reconhecendo-os e cultivando-os ou repelindo-os, ora transmitimos talentos, ora suprimimos características constrangedoramente negativas.
Não há como prever o comportamento de um indivíduo (nem mesmo perscrutando a psyché ‘Alma’, como os psicanalistas: “me fale de seus pais”) ou mensurar a profundidade da desalentadora dor causada pelo ultraje que os familiares são obrigados a vivenciar. Há muito sabemos que origem não é, obrigatoriamente, destino e que cabe a cada um de nós a responsabilidade de interromper a transmissão hereditária de indisfarçáveis deficiências.
Desnorteadas, muitas “Marias” se vêem acometidas pela atér, cegueira que induz ao estado de desvario, depois à ação desvairada e por fim, à ruína.
Isso porque um lar não é um órgão como o FMI ou um país onde, tranquilamente, outro(a) economista ou candidato(a) substitui o execrável, com discurso persuasivo que induz a enxergarmos, no novo, talento e competência ainda maior.
Macbeth comete crimes terríveis devido à sua ambição, uma falha de caráter.
(Charles Kean representando Macbeth, 1858
Devastadoramente destrutiva na esfera privada da sacra célula familiar, onde prisão, ostracismo, renúncia e expulsão não resolvem o problema (e tampouco é possível aventar legítima substituição), ausência de ética, sorrateiramente desampara inocentes. Ao legar a “falta”, estabelecendo o imperativo de uma irreversível hamartía, extermina o futuro.
Luciene Felix
Professora de Filosofia e Mitologia Greco-romana da
Escola Superior de Direito Constitucional – ESDC